quarta-feira, junho 06, 2007

A Vaca das Cordas

Temos lido interessantes apontamentos históricos no blogue http://www.limianismo.blogspot.com/, sobre a Vaca das Cordas. O último, publicado hoje, reproduz um depoimento de Luis Dantas. Agradaram-me particularmente as palavras iniciais - "não há verdade absoluta quando se procura o tempo perdido na História". Em tempos que valorizam o imediato, a produção de "verdades" numa correnteza em catadupa, onde o silêncio deu lugar ao estribilho sibilar, onde as vozes se dizem respeitadoras do outro mas deles tomam apenas uma parte (a mais visível), onde deixou de haver espaço à compreensão, é bom ver quem anuncie trabalhos "inacabados", em contrução. Sem arvorarem a bandeira da palavra definitiva. Em História, na ciência de uma forma geral, não há verdade absoluta e nunca teremos a capacidade de reconstituir todo o passado (velha ilusão positivista). Como dizia H.-I. Marrou, "podes saber qualquer coisa do passado, não podes saber tudo". Não tenhamos, também, a ilusão de crer que para "saber tudo" basta somar mais documentos (sim, a história faz-se com documentos!). O trabalho de história é apenas portador de verdade parcial. Em boa medida, a dimensão da verdade do trabalho histórico é, corroborando o historiador citado, proporcional à riqueza humana do historiador. Luis Dantas fala de silêncios, de obra incompleta; isso confirma a qualidade do trabalho e do historiador. No processo de reflexão que abriu não deixarei de recordar que as gerações anteriores não nos deixaram tudo, elas foram selectivas (como hoje o somos), escolheram, consciente ou inconscientemente, aquilo que queriam transmitir ao presente. Assim, no caso da "Vaca das Cordas" para além da necessidade de apurar a origem do acontecimento, interessa perceber como é que cada geração o viveu e o que cada geração deixou transparecer. Para além da compreensão do ritual, sempre portadora da ideia de continuidade, de aparente imobilidade, seria interessante produzir uma história que atendesse às suas múltiplas vivências, dentro de uma mesma geração e em diferentes épocas.
Em 1908, um jornal local escrevia que "um pobre boi, cruelmente martyrisado pelo rapazio, percorreu algumas ruas da villa, no meio de grande algazarra da parte de todos os que procuravam attingilo com o afilado prego seguro na estremidade de uma vara". O texto, em tom de lamentação, dá-nos um modo de viver a "Vaca das Cordas". O modo de um letrado, de um espírito impregnado dos valores burgueses, que vêm nestes festejos sinais da barbárie popular, indignos de ocorrer no espaço urbano. Hoje poderia, grosso modo, ser escrito, com maior ou menor acutilância, por um ambientalista. Um ano depois, o mesmo jornal descreve o evento: "eram cinco horas da tarde, já todas as sacadas do Largo de Camões, ruas do Rosario, Visconde do Amoroso Lima, Boaventura Vieira, etc, se achavam apinhadas de senhoras que nesse dia antecipam ou transferem o seu jantar para não faltarem a dar motivo festivo a tam simpatico divertimento". Ao colocar a expressão simpático em itálico o autor do artigo coloca-se numa posição de espectador e denuncia o estrato social daqueles que vêm a "Vaca das Cordas" a partir das varandas. A "Vaca das Cordas" é um tempo dominado pelas camadas populares, que tomam as ruas, o espaço público. Deixemos as últimas linhas dessa descrição: "A vaca que, na forma dos mais anos, era um boi, começou a sua dolorosa peregrinação pelas ruas e largo da vila cerca das cinco e meia horas da tarde. No largo de Camões, onde o divertimento se torna mais selvagem, queremos dizer, mais engraçado, houve as costumadas esbarradelas do animalejo de encontro á coluna do candeeiro central, as gragalhadas argentinas (...) de gente da escada acima e a risota estridente do povo de rua ao largo". Sendo um fenómeno popular, chega-nos pelas mãos das elites intelectuais, pelos portadores de saber letrado, e estas apenas nos deixaram ver uma parte do puzzle. O silêncio das fontes é também ele uma forma de "falar". Apetece-nos voltar ao tema... estas linhas (também) estão inacabadas.

2 comentários:

Anónimo disse...

O BOI DAS CORDAS

Sendo certo que a Constituição da República Portuguesa garante a igualdade de direitos entre todos os indivíduos, independentemente da sua orientação sexual, não admira que também em Ponte de Lima a Vaca das cordas se tenha transsexualizado em boi!
Para quem se assume arauto das tradições mais genuínas e, há cerca de uma dúzia de anos, quando os limianos que residem em Lisboa, sob a égide da Casa do Concelho de Ponte de Lima, resolveram realizar uma demonstração da vaca das cordas - com uma vaca ! - como forma de divulgação a anteceder à celebração realizada na vila limiana, se insurgiram pelo facto da mesma ter fora do concelho limiano, o silêncio a que agoram se remetem apenas revela a sua hipócrisia e, eventualmente, o receio de deixarem de comer da gamela do poder.
Esses são como a vaca das cordas: travestis da sua própria consciência!

Anónimo disse...

A Vaca das Cordas em Sintra

No concelho de Sintra existe uma pequena e graciosa localidade cravada no interior da serra que pertence à freguesia de Colares e dá pelo nome de Penedo. Aqui realiza-se anualmente a Festa do Espirito Santo do Penedo e, integrado nas festividades, também se realiza o ritual da vaca das cordas, em muitos aspectos semelhantes à que tem lugar em Ponte de Lima.
Como o próprio nome dos festejos indica, esta tradição insere-se nas festas do Espírito Santo, aliás à semelhança da tourada à corda nos Açores.
Também em Cascais deverá ter-se realizado outrora um ritual semelhante, uma vez que aqui o povo lida o boi na praia, mas desconhece-se se alguma vez foi conduzido por meio de cordas.
Como é evidente, a vaca das cordas deverá ter-se realizado noutras localidades que, provavelmente, nalguns casos transformaram em largada e deu lugar a um "bodo para os pobres", caçada que mereceu a descrição de José Leite de Vasconcelos. A diferença relativamente à que se realiza em Ponte de Lima é que até há relativamente pouco tempo, aqui mantinha-se a tradição ou seja, a vaca ainda era conduzida por meio de cordas. Mas, actualmente, nem em Ponte de Lima a tradição ainda é o que era, e nas veias dos limianos começa a correr sangue ribatejano... e já chamam pelo toiro!
Olé!

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