"Em Ponte de Lima, a ponte que deu o nome à vila é um dois mais antigos monumentos do seu género em Portugal. Assenta em vinte e quatro arcos, dos quais dezassete em ogiva.
Foi reconstruída primeiramente por D. Pedro I, talvez sobre a ponte romana da época da via militar de Braga e Astorga, e depois por D. Manuel. Era entestada por duas belas torres, uma do lado de Arcozelo, outra do lado da vila, a que dava entrada por uma porta ogival. As guardas da ponte, assim como as duas torres, eram guarnecidas de ameias.
Com essa forma se conservou este curioso monumento até 1834. Depois, com o regime liberal, veio uma vereação que mandou arrasar as duas torres; e outra vereação, não querendo ficar atrás da primeira, mandou serrar as ameias que coroavam as guardas! O cinto de muralhas, com as suas cinco portas, as suas torres e as suas barbacãs, com que D. Pedro I fortificou a vila reedificada no século XIV, não caiu também inteiramente de per si, foram ainda vereações municipais que sucessivamente se encarregaram de o fazer desaparecer.
O poder central, em sua alta e suprema indiferença pelos mais estúpidos atentados de que são objecto os monumentos mais vuneráveis da arte e da história nacional, aprovou a uma por uma todas as marradas de preto-capoeira com que à municipalidade de Ponte de Lima aprouve derribar e destruir os mais belos vestígios arquitectónicos da gloriosa história da antiga vila e o próprio sentido heráldico das suas armas, nas quais em escudo de prata figura uma ponte entre duas torres."
Ramalho Ortigão (1836-1915)
O excerto é mais um elemento para a reflexão em torno das alterações arquitectónicas e urbanísticas que se vão processando em Ponte de Lima, à semelhança de outras localidades. Uma das intenções dos homens do século XIX era promover a higienização dos espaços urbanos, cuidando da salubridade, eliminando focos de imundície e espaços lúgrubes, promovendo o "arejamento" dos arruamentos, estabelecendo planos de alinhamento, corrigindo o traçado das ruas... Aparentemente tudo boas razões para a destruição de parcelas das muralhas medievais! Porém, Ramalho Ortigão olha para os factos de outro modo - a vaga modernizadora não pode recusar a conservação do património local. O debate é actual, embora se formule noutros termos e as razões do "bom gosto" tenham outras configurações. Não deixa de ser interessante notar a comunhão entre o poder local e o poder central na "cegueira" denunciada por Ortigão.
Como é óbvio regressaremos ao tema.
[Excerto de As Farpas. Lisboa: Clássica Editora, 1986. Tomo I, pág. 44-45]
[Foto de Ramalho Ortigão: Photographia Contemporanea In O Contemporaneo, Lisboa 1881, nº 100; foto: jcml]